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segunda-feira, 2 de setembro de 2013

CEM SONETOS DE AMOR



I

MATILDE, nome de planta ou pedra ou vinho,
do que nasce da terra e dura
palavra em cujo crescimento amanhece,
em cujo estio rebenta a luz dos limões.

Nesse nome correm navios de madeira
rodeados por exames de fogo azul-marinho.
e essas letras são a água de um rio
que em meu coração calcinado desemboca.

Oh nome descoberto sob uma trepadeira
como a porta de um túnel desconhecido
que comunica com a fragrância do mundo!

Oh invade-me com tua boca abrasadora,
indaga-me,se queres,com teus olhos noturnos,
mas em seu nome deixa-me navegar e dormir.


Pablo Neruda
In Cien Sonetos de Amor
Trad.: Carlos Nejar


II

AMOR, quantos caminhos até chegar a um beijo,
Que solidão errante até tua companhia!
Seguem os trens sozinhos rodando com a chuva.
Em Taltal não amanhece ainda a primavera.

Mas tu e eu, amor meu, estamos juntos,
juntos desde a roupa ás raízes,
juntos de outono,de água,de quadris,
Até ser só tu, só eu juntos.

Pensar que custou tantas pedras que leva o rio,
A desembocadura da água de Boroa,
Pensar que separados por trens e nações

Tu e eu tínhamos que simplesmente amar-nos
Com todos confundidos, com homens e mulheres,
Com a terra que implanta e educa os cravos.


Pablo Neruda
In Cien Sonetos de Amor
Trad.: Carlos Nejar



III

ÁSPERO AMOR, violeta coroada de espinhos,
cipoal entre tantas paixões eriçado,
lança das dores,corola de cólera,
por que caminhos e como te dirigiste a minha alma?

Por que precipitaste teu fogo doloroso,
de repente, entre as folhas frias de meu caminho ?
Quem te ensinou os passos que até mim te levaram?
Que flor,que pedra que fumaça,mostraram minha morada?

O certo é que tremeu a noite pavorosa,
a aurora encheu todas as taças com seu vinho
e o sol estabeleceu sua presença celeste.

enquanto o cruel amor sem trégua me cercava,
até que lacerando-me com espadas e espinhos
abriu no coração um caminho queimante.

Pablo Neruda
In Cien Sonetos de Amor
Trad.: Carlos Nejar



IV

RECORDARÀS aquela quebrada caprichosa
onde os aromas palpitantes subiram,
de quando em quando um pássaro vestido
com água e lentidão: traje de inverno.

Recordarás os dons da terra:
irascível fragrância,barro de ouro,
ervas do mato ,loucas raízes,
sorrílegos espinhos como espadas

Recordarás o ramo que trouxeste,
ramo de sombra e água com silêncio,
ramo como uma pedra com espuma.

E aquela vez foi como nunca e sempre:
vamos ali onde não espera nada
e achamos tudo o que está esperando.


Pablo Neruda
In Cien Sonetos de Amor
Trad.: Carlos Nejar


V

NÃO TE TOQUE a noite nem o ar nem a aurora,
só a terra ,a virtude dos cachos,
as maçãs que crescem ouvindo a água pura,
o barro e as resinas de teu país fragrante.

Desde Quinchamalí onde fizeram teus olhos aos pés criados para mim na Fronteira
és a greda escura que conheço:
em teus quadris toco de novo todo o trigo.

Talvez tu não saibas, araucana,
que quando antes de amar-te me esqueci de teus beijos
meu coração ficou recordando tua boca

e fui como um ferido pelas ruas
ate que compreendi que havia encontrado
amor, meu território de beijos e vulcões.


Pablo Neruda
In Cien Sonetos de Amor
Trad.: Carlos Nejar



VI

NOS BOSQUES, perdido, cortei um ramo escuro
E aos lábios, sedento, levantei se sussurro:
Era talvez a voz da chuva chorando,
Um sino fendido ou um coração cortado.

Algo que de tão longe me parecia
Oculto gravemente, coberto pela terra,
Um grito ensurdecido por imensos outonos,
Pela entreaberta e úmida escuridão das folhas.

Por ali, despertando dos sonhos do bosque,
O ramo de avelã cantou sob minha boca
E seu vagante olor subiu por meu critério

Como se me buscassem de repente as raízes
Que abandonei, a terra perdida com minha infância,
E me detive pelo aroma errante.


Pablo Neruda
In Cien Sonetos de Amor
Trad.: Carlos Nejar



VII

VIRÀS comigo, como, disse, sem que ninguém soubesse
onde e como pulsava meu estado doloso
e para mim não havia cravo nem barcarola,
nada senão uma ferida pelo amor aberta.

Repeti: vem comigo, como se morresse,
E ninguém viu em minha boca a lua que sangrava,
Ninguém viu aquele sangue que subia ao silêncio.
Oh amor, agora esqueçamos a estrela com pontas!

Por isso quando ouvi que tua voz repetia
“Virás comigo”,foi como se desatasses
Dor, amor, a fúria do vinho encarcerado

que de sua cantina submergida soubesse
e outra vez em minha boca senti um sabor de chama,
de sangue e cravos ,de pedras e queimadura.


Pablo Neruda
In Cien Sonetos de Amor
Trad.: Carlos Nejar




VIII

SE NÂO FOSSE porque têm cor-de-lua teus olhos,
De dia com argila, com trabalho, com fogo,
E aprisionada tens a agilidade do ar,
Se não fosse porque uma semana és de âmbar.

Se não fosse porque és o momento amarelo
Em que o outono sobe pelas trepadeiras
E és ainda o pão que a lua fragrante
elabora passando sua farinha pelo céu.

Oh, bem-amada, eu não te amaria!
Em teu abraço eu abraço o que existe,
A areia, o tempo, a árvore da chuva.

E tudo vive para que eu viva:
Sem ir tão longe posso ver tudo:
Vejo em tua vida todo o vivente.


Pablo Neruda
In Cien Sonetos de Amor
Trad.: Carlos Nejar



IX

AO GOLPE da onda contra a pedra indócil
Estala a claridade e estabelece sua rosa
E o círculo do mar se reduz a um cacho,
A uma só gota de sal azul que tomba.

Oh radiante magnólia desatada na espuma,
Magnética viageira cuja morte floresce
E eternamente volta a ser e a não ser nada:
Sal roto, deslumbrante movimento marinho.

Juntos tu e eu, amor meu, selamos o silêncio,
Enquanto o mar destrói suas constantes estátuas
E derruba suas torres de enlevo e brancura,

Porque na trama destes tecidos invisíveis
Da água entornada, da incessante área,
Sustentamos a única e acossada ternura.


Pablo Neruda
In Cien Sonetos de Amor
Trad.: Carlos Nejar




X

SUAVE é a bela como música e madeira,
Ágata, telas, trigo, pêssegos transparentes,
Tivessem erigido a fugitiva estátua
Para a onda dirige seu contrário frescor,

O mar molha polidos pés copiados
Á forma recém-trabalhada na areia
E é agora seu fogo feminino de rosa
Uma borbulha só que o sol e o mar combatem.

Ai, que nada te toque senão o sal do frio!
Que nem o amor destrua a primavera intacta.
Formosa, revérbero da indelével espuma.

Deixa que teus quadris imponham na água
Uma medida nova de cisne ou de nenúfar
E navegue tua estátua pelo cristal eterno.


Pablo Neruda
In Cien Sonetos de Amor
Trad.: Carlos Nejar



XI

TENHO fome de tua boca, de tua voz, de teu pêlo,
E pelas ruas vou sem nutrir-me, calado,
Não me sustenta o pão, a aurora me desequilibra,
Busco o som líquido de teus pés no dia.

Estou faminto de teu riso resvalado,
De tuas mãos cor de furioso celeiro,
Tenho fome da pálida pedra de tuas unhas,
Quero comer tua pele como uma intacta amêndoa.

Quero comer o raio queimado em tua beleza,
O nariz soberano do arrogante rosto,
Quero comer a sombra fugaz de tuas pestanas

E faminto venho e vou olfateando o crepúsculo
Buscando-te, buscando teu coração ardente
Como um puma na solidão de Quintratúe.


Pablo Neruda
In Cien Sonetos de Amor
Trad.: Carlos Nejar



XII

PLENA MULHER, maça carnal, lua quente,
Espesso aroma de algas, lodo e luz pisados,
Que obscura claridade se abre entre tuas colunas?
Que antiga noite o homem toca com seus sentidos?

Ai,amar é uma viagem com água e com estrelas,
Com ar opresso e bruscas tempestades de farinha:
Amar é um combate de relâmpagos
E dois corpos por um só mel derrotados.

Beijo a beijo percorro teu pequeno infinito,
Tuas margens, teus rios teus povoados pequenos.
E o fogo genital transformado em delícias

Corre pelos tênues caminhos do sangue
Até precipitar-se como um cravo noturno,
Até ser e não ser senão na sombra um raio.


Pablo Neruda
In Cien Sonetos de Amor
Trad.: Carlos Nejar



XIII

A LUZ que de teus pés sobe a tua cabeleira,
A turgência que envolve tua forma delicada
Não é de nácar marinho, nunca de prata fria:
É de pão,de pão amado pelo fogo.

A farinha acumulou seu celeiro contigo
E cresceu incrementada pela idade venturosa,
Quando os cereais duplicaram teu peito
Meu amor era o carvão trabalhando na terra.

Oh, pão tua fronte,pão tuas pernas,pão tua boca,
Pão que devoro e nasce com luz cada manhã,
Bem-amada bandeirada das fornadas,

Uma lição de sangue te concedeu o fogo,
Da farinha aprendeste a ser sagrada,
E do pão o idioma e o aroma


Pablo Neruda
In Cien Sonetos de Amor
Trad.: Carlos Nejar


XIV

ME FALTA tempo para celebrar teus cabelos
Um por um devo contá-los e louvá-los
Outros amantes querem viver com certos olhos,
Eu só quero ser penteador de teus cabelos.

Na Itália te batizaram Medusa
Pela encrespada e alta luz de tua cabeleira.
Eu te chamo brejeira minha e emaranhada:
Meu coração conhece as portas de teu pêlo.

Quando tu te extraviares em teus próprios cabelos,
Não me esqueças, lembra-te que te amo.
Não me deixes perdido ir sem tua cabeleira

Pelo mundo sombrio de todos os caminhos
Que só tem sombra, transitórias dores,
Ate que o sol suba a torre de teu pelo.


Pablo Neruda
In Cien Sonetos de Amor
Trad.: Carlos Nejar



XV

DE HÁ muito tempo a terra te conhece:
És compacta como o pão ou a madeira,
Es corpo, cacho de segura substância,
Tens peso de acácia, de legume dourado.

Sei que existes não só porque teus olhos voam
E dão luz as coisas como janela aberta,
Mas porque de barro te fizeram e cozeram
No Chile, num forno de adobe estupefato.

Os seres se derramam como ar ou água ou frio e
Vagos são, se apagam ao contato do tempo,
Como se antes de mortos fossem fragmentados.

Tu cairás comigo como pedra na tumba
E assim por nosso amor que não foi consumido
Continuará vivendo conosco a terra.


Pablo Neruda
In Cien Sonetos de Amor
Trad.: Carlos Nejar



XVI

AMO o pedaço de terra que és tu,
Porque das campinas planetárias
Outra estrela não tenho.Tu repetes
A multiplicação do universo.

Teus amplos olhos são luz que tenho
Das constelações derrotadas,
Tua pele palpita como os caminhos.
Que percorre na chuva o meteoro.


De tanta luz foram para mim teus quadris,
De todo o sol tua boca profunda e sua delícia,
De tanta luz ardente como o mel na sombra

Teu corpo queimado por longos raios rubros,
E assim percorro o fogo de tua forma beijando-te,
Pequena e planetária, pomba e geografia.


Pablo Neruda
In Cien Sonetos de Amor
Trad.: Carlos Nejar



XVII

NÃO TE AMO como se fosse rosa de sal, topázio
Ou flecha de cravos que propagam o fogo
Te amo como se amam certas coisas obscuras,
Secretamente, entre a sombra e a alma.

Te amo com a planta que não floresce e leva
Dentro de si, oculta,a luz daquelas flores,
E graças a teu amor vive escuro em meu corpo
O apertado aroma que ascendeu da terra.

Te amo sem saber como,nem quando,nem onde,
Te amo diretamente sem problemas nem orgulho:
Assim te amo porque não sei amar de outra maneira,

Senão assim deste modo em que não sou nem es
Tão perto que tua mão sobre meu peito é minha
Tão perto que se fecham teus olhos com meu sonho.

Pablo Neruda
In Cien Sonetos de Amor
Trad.: Carlos Nejar



XVIII

PELAS MONTANHAS vais como vem a brisa
ou a corrente brusca que baixa da neve
Ou melhor, tua cabeleira palpitante confirma
Os altos ornamentos do sol na espessura.

Toda a luz do Cáucaso cai sobre teu corpo
Como numa pequena vasilha interminável
Em que a água se muda de vestido e de canto
A cada movimento transparente do rio.

Pelos montes o velho caminho de guerreiros
E embaixo enfurecida brilha como uma espada
A água entre muralhas de mãos minerais,

Até que tu recebes dos bosques de repente
O ramo ou o relâmpago de umas flores azuis
E a insólita flecha de um aroma selvagem.


Pablo Neruda
In Cien Sonetos de Amor
Trad.: Carlos Nejar


XIX

ENQUANTO a magna espuma de Ilha Negra,
O sal azul, o sol nas ondas te molham,
Eu contemplo os trabalhos da vespa
Empenhada no mel de seu universo.

Vai e vem equilibrando seu reto e ruivo vôo
Como se deslizasse de um arame invisível
A elegância do baile, a sede de uma cintura,
E os assassinatos do ferrão maligno.

De petróleo e laranja é seu arco-íris,
Busca como um avião entre a erva
Com um rumor de espiga, voa, desaparece,

Enquanto tu sais do mar, nua,
E regressas ao mundo cheia de sal e sol,
Reverberante estátua e espada da areia.


Pablo Neruda
In Cien Sonetos de Amor
Trad.: Carlos Nejar


XX

MINHA FEIA és uma castanha despenteada,
Minha bela és formosa como o vento,
Minha feia, de tua boca se podem fazer duas,
Minha bela, são teus beijos como frescas melancias

Minha feia, onde estão escondidos teus seios?
São mínimos como dois vasos de trigo.
Me agradaria ver-te duas luas no peito:
As gigantescas torres de tua soberania

Minha feia, o mar não tem tuas unhas em sua tenda
Minha bela, flor a flor, estrela por estrela,
Onda por onda, mensurei teu corpo:

Minha feia, te amo por tua cintura de ouro
Minha bela, te amo por uma ruga em tua fronte
Amor ,te amo por clara e por escura.


Pablo Neruda
In Cien Sonetos de Amor
Trad.: Carlos Nejar



XXI

OH que todo o amor propague em mim sua boca,
Que não sofra um momento mais sem primavera,
Eu não vendi senão minhas mãos á dor,
Agora bem-amada, deixa –me com teus beijos.

Cobre a luz do mês aberto com teu aroma,
Fecha as portas com tua cabeleira
E em relação a mim não esqueças que desperto o choro
É porque em sonhos apenas sou um menino perdido

Que busca entre as folhas da noite tuas mãos,
O contato do trigo que tu me comunicas,
Um rapto cintilante de sombra e energia.

Oh, bem-amada, e nada mais que sombra
Por onde me acompanhes em teus sonhos
E me digas a hora da luz.


Pablo Neruda
In Cien Sonetos de Amor
Trad.: Carlos Nejar


XXII

QUANTAS vezes, amor, te amei sem ver-te e talvez sem lembranças,
Sem reconhecer teu olhar, sem fitar-te centaura,
Em regiões contrárias, num meio-dia queimante:]
Era só o aroma dos cereais que amo.

Talvez ti vi, te supus ao passar levantando uma taça
Em Angola, á luz da lua de junho,
Ou eras tu a cintura daquela guitarra
Que troquei nas trevas e ressou como o mar desmedido

Te amei sem que o soubesse, e busquei tua memória
Nas casas vazias entrei com lanterna a roubar teu retrato
Mas eu já não sabia como eras. De repente

Enquanto ias comigo te toquei e se deteve minha vida:
Diante de meus olhos estavas, regendo-me, e reinas.
Como fogueira nos bosques o fogo é teu reino.


Pablo Neruda
In Cien Sonetos de Amor
Trad.: Carlos Nejar



XXIII

FOI luz o fogo e pão a lua rancorosa,
O jasmim duplicou seu estrelado segredo,
E do terrível amor as suaves mãos puras
Deram paz a meus olhos e sol a meus sentidos.

Oh amor, como de repente, dos rasgos
Fizeste o edifico da doce firmeza,
Derrotaste as unhas malignas e zelosas
E hoje diante do mundo somos como uma só vida

Assim foi, assim é e assim será até quando,
Selvagem e doce amor, bem-amada Matilde,
O tempo nos assinale a flor final do dia.

Sem ti, sem mim, sem luz já não seremos:
Então mais além da terra e a sombra
O resplendor de nosso amor seguirá vivo.


Pablo Neruda
In Cien Sonetos de Amor
Trad.: Carlos Nejar



XXIV

AMOR, amor, as nuvens á torre do céu
Subiram como triunfantes lavadeiras,
E tudo ardeu em azul, foi tudo estrela:
O mar, a nave, o dia se desterraram juntos.

Vem ver as cerejeiras da água constelada
E a clave redonda do rápido universo,
Vem tocar o fogo do azul instantâneo,
Vem antes que suas pétalas se consumam.

Aqui não há senão luz, quantidades, cachos,
Espaço aberto pelas virtudes do vento
Até entregar os últimos segredos da espuma.

E entre tantos azuis-celestes, submergidos,
Se perdem nossos olhos adivinhando apenas
Os poderes do ar, as chaves submarinas.


Pablo Neruda
In Cien Sonetos de Amor
Trad.: Carlos Nejar


XXV

ANTES de amar-te,amor,nada era meu:
Vacilei pelas ruas e as coisas:
Nada contava nem tinha nome:
O mundo era do ar que esperava.

E conheci salões cinzentos,
Túneis habitados pela lua,
Hangares cruéis que se despediam,
Perguntas que insistiam na areia.

Tudo estava, morto e mudo,
Caído,abandonado e decaído,
Tudo era inalienavelmente alheio,

Tudo era dos outros e de ninguém,
Até que tua beleza e tua pobreza
De dádivas encheram o outuno.


Pablo Neruda
In Cien Sonetos de Amor
Trad.: Carlos Nejar


XXVI

NEM A COR das dunas terríveis em Iquique,
Nem o estuário do Rio Doce da Guatemala,
Mudaram teu perfil conquistado no trigo,
Teu estilo de uva grande,tua boca de guitarra.

Oh coração, oh minha desde todo o silencio,
Dos cumes onde reinou a trepadeira
Até as desoladas planícies de platina,
Em toda pátria pura te repetiu a terra.

Mas nem a intratável mão de montes minerais,
Nem neve tibetana, nem pedra da Polônia,
Nada alterou tua forma de cereal viageiro,

Como se greda ou trigo, guitarras ou cachos
Do Chile defendessem em ti seu território
Impondo o mandato da lua silvestre.


Pablo Neruda
In Cien Sonetos de Amor
Trad.: Carlos Nejar


XXVII

NUA és tão simples como uma de tuas mãos,
Lisa, terrestre, mínima, redonda, transparente,
Tens linhas de lua,caminhos de maçã,
Nua és magra como o trigo nu.

Nua és azul como a noite em Cuba,
Tens trepadeiras e estrelas no pêlo,
Nua és enorme e amarela
Como o verão numa igreja de ouro.

Nua és pequena como uma de tuas unhas,
Curva,sutil,rosada até que nasça o dia
E te metes no subterrâneo mundo

Como num longo túnel de trajes e trabalhos:
Tua claridade se apaga, se veste, se desfolha
E outra vez volta a ser uma mão nua.


Pablo Neruda
In Cien Sonetos de Amor
Trad.: Carlos Nejar



XXVIII

AMOR, de grão a grão, de planeta a planeta,
A rede do vento com seus países sombrios,
A guerra com seus sapatos de sangue,
Ou melhor o dia e a noite da espiga.

Por onde fomos, ilhas ou pontes ou bandeiras,
Violinos do fugaz outono atormentado,
Repetiu a alegria dos lábios do corpo,
A dor nos deteve com sua lição de pranto.

Em todas as republicas desenvolvia o vento
seu pavilhão impune, sua glacial cabeleira,
e logo regressava a flor a seus trabalhos.

Mas em nós nunca se calcinou o outono.
E em nossa pátria imóvel germinava e crescia
O amor com os direitos do orvalho.


Pablo Neruda
In Cien Sonetos de Amor



XXIX

VENS da pobreza das casas do sul,
Das regiões duras com frio e terremoto
Que quando ate seus deuses rodaram á morte
Nos deram a lição da vida na greda.

És um cavalinho de greda negra, um beijo
De barro escuro, amor, papoula de greda,
Pomba do crepúsculo que voou nos caminhos,
Alcanzia com lacrimas de nossa pobre infância

Moça, conservaste teu coração de pobre,
Teus pés de pobre acostumados as pedras,
Tua boca que nem sempre teve pão ou delicia.

És do pobre Sul, de onde vem minha alma:
Em seu céu tua mae segue lavando roupa
Com minha mãe.Por isso escolhi,companheira.


Pablo Neruda
In Cien Sonetos de Amor
Trad.: Carlos Nejar



XXX

TENS do arquipélago as fibras do alerce,
A carne trabalhada pelos séculos do tempo,
Veias que conheceram o mar das madeiras,
Sangue verde caído do céu á memória.

Ninguém recolhera meu coração perdido
Entre tantas raízes, no frescor amargo;
Do sol multiplicado pela fúria da água,
Ali vive a sombra que não viaja comigo.

Por isso tu saíste do Sul como uma ilha
Povoada e coroada por plumas e madeira
E eu senti o aroma dos bosques errantes,


Achei o mel escuro que conheci na selva,
E toquei em teus quadris as pétalas sombrias
Que nasceram comigo e construíram minha alma.


Pablo Neruda
In Cien Sonetos de Amor
Trad.: Carlos Nejar



XXXI

COM LOUREIROS do Sul e orégão de Lota
Cinjo-te a coroa, pequena monarca de meus ossos,
E não pode faltar-te essa coroa
Que elabora a terra com balsamo e folhagem.

És, como o que te ama, das províncias verdes:
De lá trouxemos barro que nos corre no sangue,
Na cidade andamos, como tantos, perdidos,
Temerosos de que fechem o mercado.

Bem-amada, tua sombra tem olor de ameixa,
Teus olhos esconderam no Sul suas raízes,
Teu coração é uma pomba de alcanzia,

Teu corpo é liso como as pedras na água,
Teus beijos são cachos com orvalho,
E eu a teu lado vivo com a terra.

Pablo Neruda
In Cien Sonetos de Amor
Trad.: Carlos Nejar


XXXII

A CASA na manhã com a verdade revolta
De lençóis e plumas, a origem do dia
Sem direção, errante como uma pobre barca,
Entre horizontes da ordem e do sonho.

As coisas querem arrastar vestígios,
Aderências sem rumo, heranças frias,
Os papeis escondem vogais enrugadas
E na garrafa o vinho quer continuar seu ontem.

Ordenadora, passas vibrando como abelha
Tocando as regiões perdidas pela sombra,
Conquistando a luz com tua branca energia.

E se constrói então de novo a claridade:
Obedecem as coisas ao vento da vida
E a ordem estabelece seu pão e sua pomba. 


Pablo Neruda
In Cien Sonetos de Amor
Trad.: Carlos Nejar



XXXIII

AMOR, agora nos vamos á casa,
Onde a trepadeira sobe pelas escadas:
Antes que chegues, alcançou teu quarto
O verão nu com pés de madressilva.

Nossos beijos errantes percorreram o mundo:
Armênia, espessa gota de mel desenterrada,
Ceilão, pomba verde e Yang Tse separando
Com antiga paciência os dias das noites.

E agora, bem-amada, pelo mar crepitante
Voltamos como duas aves cegas ao muro,
Ao ninho da longínqua primavera,

Porque o amor não pode voar sem deter-se:
Ao muro ou ás pedras do mar vão nossas vidas,
A nosso território regressaram os beijos. 


Pablo Neruda
In Cien Sonetos de Amor
Trad.: Carlos Nejar


XXXIV

ÉS do mar e prima do orégão,
Nadadora, teu corpo é de água pura,
Cozinheira, teu sangue é terra viva
E teus costumes são floridos e terrestres.

Á água vão teus olhos e levantam as ondas,
Á terra tuas mãos e saltam as sementes,
Em água e terra tens propriedades profundas
Que em ti se juntam como as leis de greda.

Naiade, corta teu corpo a turquesa
E logo ressurgido floresce na cozinha
De tal modo que assumes quanto existe

E ao fim dormes rodeada por meus braços que afastam
Da sombra sombria, para que descanses,
Legumes, algas, ervas: a espuma de teus sonhos. 


Pablo Neruda
In Cien Sonetos de Amor
Trad.: Carlos Nejar


XXXV

TUA MAO foi voando de meus olhos ao dia.
Entrou a luz como uma roseira aberta.
Areia e céu palpitavam como uma
Culminante colméia cortada nas turquesas.

Tua mão tocou silabas que tilintavam, taças,
Almotolias com azeites amarelos
Corolas, mananciais e, sobretudo, amor,
Amor: tua mão pura preservou as colheres.

A tarde foi. A noite deslizou sigilosa
Sobre o sonho do homem sua cápsula celeste.
Um triste olor selvagem soltou a madressilva.

E tua mão voltou de seu vôo voando
A fechar sua plumagem que eu julguei perdida
Sobre meus olhos devorados pela sombra. 


Pablo Neruda
In Cien Sonetos de Amor
Trad.: Carlos Nejar


XXXVI

CORAÇÃO MEU, rainha do aipo e da artesã:
Pequena leoparda do fio e a cebola:
Agrada-me ver brilhar teu império diminuto,
As armas da cera, do vinho, do azeite,

Do alho, da terra por tuas mãos aberta,
Da substancia azul em tuas mãos 
Da transmigração do sonho á salada,
Do réptil enrolado na mangueira.

Tu, com tua podadeira levantando o perfume,
Tu,com a direção do sabão na espuma,
Tu, subindo minhas loucas escalas e escadas,

Tu,manejando o sintoma de minha caligrafia
E encontrando na areia do caderno
As letras extraviadas que buscavam tua boca 


Pablo Neruda
In Cien Sonetos de Amor
Trad.: Carlos Nejar


XLVI

DAS ESTRELAS que admirei, molhadas
Por rios e rocios diferentes,
Eu não escolhi senão a que eu amava
E desde então durmo com a noite.

Da onda, uma onda e outra onda,
Verde mar, verde frio, ramo verde,
Eu não escolhi senão uma só onda:
A onda indivisível de teu corpo.

Todas as gotas, todas as raízes,
Todos os fios da luz vieram,
Vieram-me ver tarde ou cedo.

Eu quis para mim tua cabeleira.
E de todos os dons de minha pátria
Só escolhi teu coração selvagem. 


Pablo Neruda
In Cien Sonetos de Amor
Trad.: Carlos Nejar


XLVII

DETRAS DE MIM no ramo quero ver-te.
Pouco a pouco te converteste em fruto.
Não te custou subir das raízes
Cantando com tua silaba de seiva.

E aqui estarás primeiro em flor fragrante,
Na estátua de um beijo convertida,
Até que o sol e terra, sangue e céu,
Te concedam a delicia e a doçura.

No ramo verei tua cabeleira,
Teu sinal madurando na folhagem,
Acercando as folhas a minha sede,

E tua substancia encherá minha boca,
O beijo que subiu da terra
Com teu sangue de fruta enamorada. 


Pablo Neruda
In Cien Sonetos de Amor
Trad.: Carlos Nejar



XLVIII

DOIS AMANTES ditosos fazem um só pão,
Uma só gota de lua na erva,
Deixam andando duas sombras que se reúnem,
Deixam um só sol vazio numa cama.

De todas as verdades escolheram o dia:
Não se ataram com fios senão com um aroma,
E não despedaçaram a paz nem as palavras.
A ventura é uma torre transparente.

O ar, o vinho vão com os dois amantes,
À noite lhes oferta suas ditosas pétalas,
Tem direito a todos os cravos.

Dois amantes felizes não têm fim nem morte,
Nascem e morrem muitas vezes enquanto vivem
Têm da natureza a eternidade. 


Pablo Neruda
In Cien Sonetos de Amor
Trad.: Carlos Nejar



XLIX

É HOJE: todo o ontem foi caindo
Entre dedos de luz e olhos de sonho,
Amanhã chegará com passos verdes:
Ninguém detém o rio da aurora.

Ninguém detém o rio de tuas mãos,
Os olhos de teu sonho, bem-amada,
És tremor do tempo que transcorre
Entre luz vertical e sol sombrio,

E o céu fecha sobre ti suas asas
Levando-te e trazendo-te a meus braços
Com pontual, misteriosa cortesia:

Por isso canto ao dia e á lua,
Ao mar, ao tempo, a todos os planetas,
A tua voz diurna e a tua pele noturna. 


Pablo Neruda
In Cien Sonetos de Amor
Trad.: Carlos Nejar


L

COTAPOS disse que teu riso tomba
Como falcão de alguma brusca torre
E, é verdade, atravessas a folhagem do mundo
Com um só relâmpago de tua estirpe celeste

Que cai, e corta, e saltam as línguas do orvalho,
As águas do diamante, a luz com suas abelhas
E ali onde vivia com sua barba o silêncio
Rebentam as granadas do sol e as estrelas.

Vem abaixo o céu com a noite sombria,
Ardem a lua cheia, sinos e cravos,
E correm os cavalos dos talabarteiros*,

Porque tu sendo tão pequeninha como és,
Do teu meteoro deixas cair o riso
Eletrizando o nome da natureza.


Pablo Neruda
In Cien Sonetos de Amor
Trad.: Carlos Nejar


LI

TEU RISO pertence a uma árvore entreaberta
Por um raio, por um relâmpago prateado
Que do céu tomba quebrando-se na copa,
Partindo em duas a árvore com uma só espada.

Nas terras altas da folhagem com neve apenas
Nasce um riso como teu, bem-amante,
É o riso do ar desatado na altura.
Costumes de araucária, bem-amada.

Cordilheirana minha, chillaneja* evidente,
Corta com as facas de teu riso a sombra,
À noite, a manhã, o mel do meio-dia,

E que saltem ao céu as aves da folhagem
Quando como uma luz esbanjadora
Rompe teu riso a árvore da vida.


Pablo Neruda
In Cien Sonetos de Amor
Trad.: Carlos Nejar



LII

CANTAS e a sol e a céu com teu canto
Tua voz debulha o cereal do dia,
Falam o pinheiro com sua língua verde:
Trinam todas as aves do inverno.

O mar enche seus porões de passos,
De sinos, cadeias e gemidos,
Tilintam metais e utensílios,
Chiam as rodas da caravana.

Mas só tua voz escuto e sobe
Tua voz com vôo e precisão de flecha,
Desce tua voz com gravidade de chuva,

Tua voz esparge altíssimas espadas
Volta tua voz pesada de violetas
E logo me acompanha pelo céu. 


Pablo Neruda
In Cien Sonetos de Amor
Trad.: Carlos Nejar



LIII

AQUI está o pão, o vinho, a mesa, a morada:
O ofício do homem, a mulher e a vida:
A este lugar corria a paz vertiginosa,
Por esta luz ardeu a comum queimadura.

Honra a tuas mãos que voam preparando
Os brancos resultados do canto e a cozinha,
Salve! A inteireza de teus pés corredores,
Viva! A bailarina que baila com a escova.

Aqueles bruscos rios com águas e ameaças,
Aquele atormentado pavilhão da espuma,
Aqueles incendiários favos e recifes

São hoje este repouso de teu sangue no meu,
Este leito estrelado e azul como a noite
Esta simplicidade sem fim da ternura. 


Pablo Neruda
In Cien Sonetos de Amor
Trad.: Carlos Nejar



TARDE

LIV

ESPLÊNDIDA razão, demônio claro
Do cacho absoluto, do reto meio-dia,
Aqui estamos ao fim, sem solidão e sós,
Longe do desvario da cidade selvagem.

Quando a linha pura rodeia sua pomba
E o fogo condecora a paz com seu sustento,
Tu e eu erigimos este celeste efeito.
Razão e amor despidos vivem nesta casa.

Sonhos furiosos, rios de amarga certeza,
Decisões mais duras que o sonho de um martelo
Caíram na dúplice taça dos amantes.

Até que na balança se elevaram, gêmeos,
E a razão e o amor como duas asas.
Assim se construiu a transparência. 


Pablo Neruda
In Cien Sonetos de Amor
Trad.: Carlos Nejar


LV

ESPINHOS, vidros rotos, enfermidades, pranto
Assediam dia e noite o mel dos felizes
E não serve a torre, nem a viagem nem os muros:
A desventura atravessa a paz dos adormecidos,

A dor sobe e desce e acerca suas colheres
E não há homem sem este movimento,
Não há natalício, não há teto nem cercado:
Há que tomar em conta esse atributo.

E no amor não valem tampouco olhos fechados,
Profundos leitos longe do pestilente ferido,
Ou do que passo a passo conquista sua bandeira.

Porque a vida pega como cólera ou rio
E abre um túnel sangrento por onde nos vigiam
Os olhos de uma imensa família de dores. 


Pablo Neruda
In Cien Sonetos de Amor
Trad.: Carlos Nejar



LVI

ACOSTUMA-TE a ver detrás de mim a sombra
E que tuas mãos saiam do rancor, transparentes,
Como se de manhã do mar fossem criadas:
O sal te deu, amor meu, proporção cristalina.

A inveja sofre, morre, se esgota com meu canto.
Um a um agonizam seus tristes capitães.
Eu digo amor, e o mundo se povoa de pombas.
Cada sílaba minha traz a primavera.

Então tu, florescida, coração, bem-amada,
Sobre meus olhos como as folhagens do céu
És, e tu te fito recostada na terra.

Vejo o sol transmigrar cachos a teu rosto,
Olhando para a altura reconheço teus passos.
Matilde, bem-amada, diadema, bem-vinda! 


Pablo Neruda
In Cien Sonetos de Amor
Trad.: Carlos Nejar


LVII

MENTEM os que disseram que eu perdi a lua,
Os que profetizaram meu porvir de areia,
Asseveraram tantas coisas com línguas frias:
Quiseram proibir a flor do universo.

“Já não cantará mais o âmbar insurgente
Da sereia, não tem senão povo.”
E mastigavam seus incessantes papéis
Patrocinando para minha guitarra o esquecimento.

Eu lhes lancei aos olhos as lanças deslumbrantes
De nosso amor cravando teu coração e o meu,
Eu reclamei o jasmim que deixavam tuas pegadas,

Eu me perdi de noite sem luz sob tuas pálpebras
E quando me envolveu a claridade
Nasci de novo, dono de minha própria treva. 


Pablo Neruda
In Cien Sonetos de Amor
Trad.: Carlos Nejar


LVIII

ENTRE os espadões de ferro literário
Passo eu como um marinheiro remoto
Que não conhece as esquinas e que canta
Porque sim, porque como se não fosse por isso.

Dos atormentados arquipélagos trouxe
Meu acordeão com borrascas, aragem de chuva louca,
E um costume lento de coisas naturais:
Elas determinaram meu coração silvestre.

Assim quando os dentes da literatura
Trataram de morder meus honrados talões*,
Eu passei, sem saber, cantando com o vento

Para os almazéns chuvosos de minha infância,
Para os bosques frios do Sul indefinível,
Para onde minha vida se completou com teu aroma.



Pablo Neruda
In Cien Sonetos de Amor
Trad.: Carlos Nejar



LIX
(G.M.)

POBRES poetas a quem a vida e a morte
Perseguiram com a mesma tenacidade sombria
E logo são cobertos por impassível pompa,
Entregues ao rito e ao dente funerário.

Eles-obscuros como pedrinhas - agora
Detrás dos cavalos arrogantes, estendidos
Vão, governados ao fim pelos intrusos,
Entre os acompanhantes, a dormir em silencio.

Antes e já seguros de que está morto o morto
Fazem das exéquias um festim miserável
Com pavões, porcos e outros oradores.

Espreitavam sua morte e então a ofenderam:
Só porque sua boca esta fechada
E já não pode contestar seu canto. 


Pablo Neruda
In Cien Sonetos de Amor
Trad.: Carlos Nejar


LX

A TI FERE aquele que quis fazer-me dano,
E o golpe do veneno contra mim dirigido
Como por uma rede passa entre meus trabalhos
E em ti deixa uma mancha de óxido e desvelo

Não quero ver, no amor, na lua florescida
De tua fronte cruzar o ódio que me espreita,
Não quero que em teu sonho deixe o rancor alheio
Esquecida sua inútil coroa de facas.

Onde vou vão atrás de meus passos amargos,
Onde rio um trejeito de horror copia minha cara,
Onde canto a inveja maldiz, ri e rói.

E é essa, amor, a sombra que a vida me tem dado:
É um traje vazio que me segue coxeando
Como um espantalho de sorriso sangrento. 


Pablo Neruda
In Cien Sonetos de Amor
Trad.: Carlos Nejar



LXI

TROXE o amor sua cauda de dores,
Seu longo raio estático de espinhos,
E fechamos os olhos porque nada,
Para que nenhuma ferida nos separe.

Não é culpa de teus olhos este pranto:
Tuas mãos não cravaram esta espada:
Não buscaram teus pés este caminho:
Chegou a teu coração o mel sombrio.

Quando o amor como a imensa onda
Nos estrelou contra a pedra dura,
Nos amassou com uma só farinha,

Caiu a dor sobre outro doce rosto
E assim na luz de estação aberta
Se consagrou a primavera ferida. 


Pablo Neruda
In Cien Sonetos de Amor
Trad.: Carlos Nejar


LXII

AI DE MIM, aí de nós, bem-amada,
Só quisemos apenas amor, amar-nos,
E entre tantas dores se dispôs
Somente a nós dois ser malferidos. 

Quisemos o tu e o eu para nós,
O tu do beijo, o eu do pão secreto,
E assim era tudo, eternamente simples,
Até que o ódio entrou pela janela.

Odeiam os que não amaram nosso amor,
Nem outro nenhum amor, desventurados
Como as cadeiras de um salão perdido,

Até que em cinza se enredaram
E o rosto ameaçante que tiveram
Se apagou no crepúsculo apagado. 


Pablo Neruda
In Cien Sonetos de Amor
Trad.: Carlos Nejar


LXIII

Não sé pelas terras desertas onde a pedra salina
É como a rosa única, é flor pelo mar enterrada,
Andei; mas pela margem de rios que cortam a neve.
As amargas alturas das cordilheiras conhecem meus passos.

Emaranhada, silvante região de minha pátria selvagem,
Lianas cujo beijo mortal se encadeia na selva,
Lamento molhado da ave que surge lançando seus calafrios,

Oh região de perdidas dores e pranto inclemente!
Não só são meus a pele venenosa do cobre
Ou o salitre estendido como estátua jazente e nevada,
Mas a vinha, a cerejeira premiada pela primavera,

São meus, e eu pertenço como átomo negro
Ás áridas terras e á luz do outono nas uvas,
A esta pátria metálica elevada por torres de neve. 


Pablo Neruda
In Cien Sonetos de Amor
Trad.: Carlos Nejar


LXIV

DE TANTO AMOR minha vida se tingiu de violeta
E fui de rumo em rumo como as aves cegas
Até chegar a tua janela, amiga minha:
Tu sentiste um rumor de coração quebrado

E ali da escuridão me levantei a teu peito,
Sem ser e sem saber fui á torre do trigo,
Surgi para viver entre tuas mãos,
Me levantei do mar a tua alegria.

Ninguém pode contar o que te devo, é lúcido
O que te devo, amor, e é como uma raiz
Natal de Araucânia, o que te devo, amada.

É sem dúvida estrelado tudo o que te devo,
O que te devo é como o poço de uma zona silvestre
Onde guardou o tempo relâmpagos errantes. 


Pablo Neruda
In Cien Sonetos de Amor
Trad.: Carlos Nejar



LXV

MATILDE, onde estás? Notei, para baixo,
Entre gravata e coração, acima,
Certa melancolia intercostal:
Era que de repente estavas ausente.

Fez-me falta a luz de tua energia
E olhei devorando a esperança,
Olhei o vazio que é sem ti uma casa,
Não ficam senão trágicas janelas.

De puro taciturno o teto escuta
Cair antigas chuvas desfolhadas,
Plumas, o que a noite aprisionou:

E assim te espero como casa só
E voltarás a ver-me e habitar-me.
De outro modo me doem as janelas.



Pablo Neruda
In Cien Sonetos de Amor
Trad.: Carlos Nejar



LXVI

NÃO TE QUERO senão porque te quero
E de querer-te a não querer-te chego
E de esperar-te quando não te espero
Passa meu coração do frio ao fogo.

Te quero só porque a ti te espero
Te odeio sem fim, e odiando-te rogo,
E a medida de meu amor viageiro
É não ver-te e amar-te como um cego.

Talvez consumirá a luz de janeiro
Seu raio cruel, meu coração inteiro,
Roubando-me a chave do sossego.

Nessa história só eu morro
E morrerei de amor porque te quero,
Porque te quero, amor a sangue e fogo.


Pablo Neruda
In Cien Sonetos de Amor
Trad.: Carlos Nejar


LXVII

A GRANDE CHUVA do Sul cai sobre a Ilha Negra
Como uma só gota transparente e pesada,
O mar abre suas folhas frias e a recebe,
A terra apreende o úmido destino de uma taça.

Alma minha, dá-me em teus beijos a água
Salobre destes meses, o mel do território,
A fragrância molhada por mil lábios do céu,
A paciência sagrada do mar no inverno.

Algo nos chama, todas as portas se abrem sós,
Relata a água um longo rumor ás janelas,
Cresce o céu para baixo tocando as raízes,

E assim tece e destece sua rede celeste o dia
Com tempo, sal, sussurros, crescimentos, caminhos,
Uma mulher, um homem e o inverno na terra. 


Pablo Neruda
In Cien Sonetos de Amor
Trad.: Carlos Nejar



LXVIII
(Carranca de Proa)

A MENINA de madeira não chegou caminhando:
Ali esteve de súbito sentada nos ladrilhos,
Velhas flores do mar cobriam sua cabeça,
Seu olhar tinha tristeza de raízes.

Ali ficou olhando nossas vidas abertas,
O ir e ser e andar e voltar pela terra,
O dia descolorindo suas pétalas graduais.
Vigiava sem ver-nos a menina de madeira.

A menina coroada pelas antigas ondas
Ali fitava com seus olhos derrotados:
Sabia que vivemos numa rede remota

De tempo e água e ondas e sons e chuva,
Sem saber se existimos ou se somos seu sonho.
Essa é a história da moça de madeira. 


Pablo Neruda
In Cien Sonetos de Amor
Trad.: Carlos Nejar


LXIX

TALVES não ser é ser sem que tu sejas,
Sem que vás cortando o meio-dia
Como uma flor azul, sem que caminhes
Mais tarde pela névoa e os ladrilhos,

Sem essa luz que levas na mão
Que talvez outros não verão dourada,
Que talvez ninguém soube que crescia
Como a origem rubra da rosa,

Sem que sejas, enfim, sem que viesses
Brusca, incitante, conhecer minha vida,
Aragem de roseira, trigo do vento,

E desde então sou porque tu és,
E desde então és, sou e somos
E por amor serei, serás, seremos. 


Pablo Neruda
In Cien Sonetos de Amor
Trad.: Carlos Nejar


LXX

TALVEZ ferido vou sem ir sangrento
Por algum dos raios de tua vida
E a meia selva me detém a água:
A chuva que tomba com seu céu.

Então toco o coração chovido:
Ali sei que teus olhos penetraram
Pela região externa de minha pena
E um sussurro de sombra surge só:

Quem é? Quem é? Mas não teve nome
A folha ou a água escura que palpita
A meia selva, surda, no caminho,

E assim, amor meu, soube que fui ferido
E ninguém falava ali senão a sombra,
A noite errante, o beijo da chuva. 


Pablo Neruda
In Cien Sonetos de Amor
Trad.: Carlos Nejar


LXXI

DE PENA em que cruza suas ilhas o amor
E estabelece raízes que logo rega o pranto,
E ninguém pode, ninguém pode evadir os passos
Do coração que corre calado e carniceiro.

Assim tu e eu buscamos um vazio, outro planeta
Onde não tocasse o sal tua cabeleira,
Onde não crescessem dores por minha culpa,
Onde viva o pão sem agonia.

Um planeta enredado por distâncias e folhagens,
Um páramo, uma pedra cruel e desabitada,
Com nossas próprias mãos fazer um ninho duro.

Queríamos, sem dano nem ferida nem palavra,
E não foi assim o amor, senão uma cidade louca
Onde as pessoas empalidecem nas sacadas. 


Pablo Neruda
In Cien Sonetos de Amor
Trad.: Carlos Nejar


LXXII

AMOR MEU, o inverno regressa a seus quartéis,
Estabelece a terra seus dons amarelos
E passamos a mão sobre um país remoto,
Sobre a cabeleira da geografia.

Ir-nos! Hoje! Adiante, rodas, naves, sinos,
Aviões acerados pelo diurno infinito
Para o olor nupcial do arquipélago,
Por longitudinais farinhas de usufruto!

Vamos, levanta-te, e endiadema-te e sobe
E desce e corre e trina com o ar e comigo
Vamo-nos aos trens da Arábia ou Tocopilla,

Sem mais que transmigrar para o pólen longínquo,
A povoados lancinantes de farrapos e gardênias
Governados por pobres monarcas sem sapatos.


Pablo Neruda
In Cien Sonetos de Amor
Trad.: Carlos Nejar



LXXIII

RECORDARÁS talvez aquele homem afilado
Que da escuridão saiu como uma faca
E, antes de que soubéssemos,sabia:
Viu a fumaça e decidiu que vinha do fogo.

A pálida mulher de cabeleira negra
Surgiu como um peixe do abismo
E entre os dois alçaram ao encontro do amor
Uma máquina armada de dentes numerosos.

Homem e mulher talaram montanhas e jardins,
Desceram aos rios, ascenderam pelos muros,
Subiram pelos montes sua atroz artilharia.

O amor soube então que se chamava amor.
E quando levantei meus olhos a teu nome 
Teu coração logo dispôs de meu caminho. 


Pablo Neruda
In Cien Sonetos de Amor
Trad.: Carlos Nejar



LXXIV

O CAMINHO molhado pela água de agosto
Brilha como se fosse cortado em lua cheia,
Em plena claridade da maça,
Em metade da fruta do outono.

Neblina, espaço ou céu, a vaga rede do dia
Cresce com frios sonhos, sons e pescados.
O vapor das ilhas combate a comarca,
Palpita o mar sobre a luz do Chile.

Tudo se reconcentra como o metal, se escondem
As folhas, o inverno mascara sua estirpe
E só cegos somos, sem cessar, somente.

Somente sujeitos ao leito sigiloso
Do movimento, adeus, da viagem, do caminho:
Adeus, da natureza caem as lágrimas. 


Pablo Neruda
In Cien Sonetos de Amor
Trad.: Carlos Nejar



LXXV

ESTA é a casa, o mar e a bandeira.
Errávamos por outros longos muros.
Não achávamos a porta nem o som
Desde a ausência como desde mortos.

E ao fim a casa abre seu silêncio,
Entramos a pisar o abandono,
Os momentos mortos, o adeus vazio,
A água que chorou no encanamento.

Chorou, chorou a casa noite e dia,
Gemeu com as aranhas*, entreaberta,
Se desgastou desde seus olhos negros,

E agora de repente a revolvemos viva,
A povoamos e não nos reconhece:
Tem que florescer, e não se acorda.


Pablo Neruda
In Cien Sonetos de Amor
Trad.: Carlos Nejar




LXXVI

DIEGO RIVERA com a paciência do osso
Buscava a Esmeraldo do bosque na pintura
Ou o vermelhão, a flor súbita do sangue,
Recolhia a luz do mundo em teu retrato.

Pintava o imperioso talhe de teu nariz,
A centelha de tuas pupilas desbocadas,
Tuas unhas que alimentam a inveja da lua,
E em tua pele estival, tua boca de melancia.

Te pôs duas cabeças de vulcão acesas
Por fogo, por amor, por estirpe araucana,
E sobre os dois rostos dourados da greda

Te cobriu com o casco de um incêndio bravio
E ali secretamente ficaram enredados meus olhos
Em tua torre total: tua cabeleira. 


Pablo Neruda
In Cien Sonetos de Amor
Trad.: Carlos Nejar


LXXVII

HOJE é hoje com o peso de todo o tempo ido,
Com as asas de tudo o que será amanhã,
Hoje é o Sul do mar, a velha idade da água
É a composição de um novo dia.

Á tua boca elevada á luz ou á lua
Se acresceram as pétalas de um dia consumido,
E ontem vem trotando por sua rua sombria
Pura que recordemos teu rosto que morreu.

Hoje, ontem e amanhã se comem caminhando,
Consumimos um dia como uma vaca ardente.
Nosso gado espera com seus dias contados,

Mas em teu coração pôs sua farinha o tempo,
Meu amor construiu um forno com barro de Temuco:
Tu és o pão de cada dia para minha alma. 


Pablo Neruda
In Cien Sonetos de Amor
Trad.: Carlos Nejar




LXXVIII

Não tenho nunca mais, não tenho sempre. Na areia
A vitória deixou seus pés perdidos.
Sou um pobre homem disposto a amar seus semelhantes.
Não sei quem és. Te amo. Não dou, não vendo espinhos.

Alguém saberá talvez que não teci coroas
Sangrentas, que combati o engano,
E que em verdade enchi a preamar de minha alma.
Eu paguei a vileza com pombas.

Eu não tenho jamais porque distinto
Fui, sou, serei. E em meu nome
De meu mutante amor proclamo a pureza.

A morte é só pedra do esquecimento.
Te amo, beijo em tua boca a alegria.
Tragamos lenha.Faremos fogo na montanha. 


Pablo Neruda
In Cien Sonetos de Amor
Trad.: Carlos Nejar



LXXIX

DE NOITE, amada, amarra teu coração ao meu
E que eles no sonho derrotem as trevas
Como um duplo tambor combatendo no bosque
Contra o espesso muro das folhas molhadas.

Noturna travessia, brasa negra do sonho
Interceptando o fio das uvas terrestres
Com a pontualidade de um trem descabelado
Que sombra e pedras frias sem cessar arrancasse.

Por isso, amor, amarra-me ao movimento puro,
Á tenacidade que em teu peito bate
Com as asas de um cisne submergido,

Para que ás perguntas estreladas do céu
Responda nosso sonho com uma só chave,
Com uma só porta fechada pela sombra. 


Pablo Neruda
In Cien Sonetos de Amor
Trad.: Carlos Nejar



LXXX

DE VIAGENS e dores eu regressei, amor meu,
A tua voz, a tua mão voando na guitarra,
Ao fogo que interrompe com beijos o outono,
Á circulação da noite no céu.

Para todos os homens peço pão e reinado,
Peço terra para o lavrador sem ventura,
Que ninguém espere trégua de meu sangue ou meu canto.
Mas a teu amor não posso renunciar sem morrer.

Por isso toca a valsa da serena lua,
A barcarola na água da guitarra
Até que se dobre minha cabeça sonhando:

Que todos os desvelos de minha vida teceram
Esta ramagem onde tua mão vive e voa
Custodiando a noite do viageiro dormido. 


Pablo Neruda
In Cien Sonetos de Amor
Trad.: Carlos Nejar

LXXXI

JÁ ÉS minha. Repousa com teu sonho em meu sonho.
Amor, dor, trabalhos, devem dormir agora.
Gira a noite sobre suas invisíveis rodas
E junto a mim és pura como o âmbar dormido.

Nenhuma mais, amor dormirá com meus sonhos.
Irás, iremos juntos pelas águas do tempo.
Nenhuma viajará pela sombra comigo,
Só tu, sempre-viva, sempre sol, sempre lua.

Já tuas mãos abriram os punhos delicados
E deixaram cair suaves sinais sem rumo
Teus olhos se fecharam como duas asas cinzas,

Enquanto eu sigo a água que levas e me leva:
À noite, o mundo, o vento enovelam seu destino,
E já não sou sem ti senão apenas teu sonho. 


Pablo Neruda
In Cien Sonetos de Amor
Trad.: Carlos Nejar


LXXXII

AMOR MEU, ao fechar esta porta noturna
Te peço, amor, uma viagem por escuro recinto:
Fecha teus sonhos, entra com teu céu em meus olhos,
Estende-te em meu sangue como num amplo rio.

Adeus, adeus, cruel claridade que foi caindo
No saco de cada dia do passado,
Adeus a cada raio de relógio ou laranja,
Saúde, oh sombra, intermitente companheira!

Nesta nave ou água ou morte ou nova vida,
Uma vez mais unidos, dormidos, ressurgidos,
Somos o matrimonio da noite no sangue.

Não sei quem vive ou morre, quem repousa ou desperta,
Mas é teu coração o que reparte
Em meu peito os dons da aurora. 


Pablo Neruda
In Cien Sonetos de Amor
Trad.: Carlos Nejar



LXXXIII

É BOM, amor, sentir-te perto de mim na noite,
Invisível em teu sonho, seriamente noturna,
Enquanto eu desenrolo minhas preocupações
Como se fossem redes confundidas.

Ausente, pelos sonhos teu coração navega,
Mas teu corpo assim abandonado respira
Buscando-me sem ver-me, completando meu sonho
Como uma planta que se duplica na sombra.

Erguida, serás outra que viverá amanha,
Mas das fronteiras perdidas na noite,
Deste ser e não ser em que nos encontramos

Algo fica acercando-nos da luz da vida
Como se o selo da sombra assinalasse
Com fogo suas secretas criaturas. 


Pablo Neruda
In Cien Sonetos de Amor




XCIII

SE ALGUMA VEZ, teu peito se detém,
Se algo deixa de andar ardendo por tuas veias,
Se tua voz em tua boca se vai sem palavra,
Se tuas mãos se esquecem de voar e dormem.

Matilde, amor, deixa teus lábios entreabertos
Porque esse último beijo deve durar comigo,
Deve ficar imóvel para sempre em tua boca
Para que assim também me acompanhe em minha morte.

Morrei beijando tua louca boca fria
Abraçando o cacho perdido de teu corpo,
E buscando a luz de teus olhos fechados.

E assim quando a terra receber nosso abraço
Iremos confundidos numa única morre
A viver para sempre de um beijo a eternidade. 


Pablo Neruda
In Cien Sonetos de Amor
Trad.: Carlos Nejar



XCIV

SE MORRO sobrevive-me com tanta força pura
Que despertes a fúria do pálido e do frio,
De sul a sul levanta teus olhos indeléveis,
De sol a sol que soe tua boca de guitarra.


Não quero que vacilem teu riso nem teus passos,
Não quero que pereça minha herança de alegria,
Não chames a meu peito, estou ausente.
Vive em minha ausência como numa casa.

É uma casa tão grande a ausência
Que passaras nela através dos muros
E penderás os quadros no ar.

É uma casa tão transparente a ausência
Que eu sem vida te verei viver
E se sofres, meu amor, morrerei outra vez. 


Pablo Neruda
In Cien Sonetos de Amor
Trad.: Carlos Nejar



XCV

OS QUE se amam como nós? Busquemos
As antigas cinzas do coração queimado
E ali que tombem um por um nossos beijos 
Até que ressuscite a flor desabitada.

Amemos o amor que consumiu seu fruto
E desceu á terra com rosto e poderio:
Tu e eu somos a luz que continua,
Sua inquebrantável espiga delicada.

Ao amor sepultado por tanto tempo frio,
Por neve e primavera, por esquecimento e outono,
Acerquemos a luz de uma nova maça,

Do frescor aberto por uma nova ferida,
Como o amor antigo que caminha em silêncio
Por uma eternidade de bocas enterradas.


Pablo Neruda
In Cien Sonetos de Amor
Trad.: Carlos Nejar


XCVI

PENSO, em época em que tu me amaste
Irá por outra azul substituída,
Será outra pele sobre os mesmos ossos,
Outros olhos verão a primavera.

Nenhum dos que amarraram esta hora,
Dos que conversaram com o fumo,
Governos, traficantes, transeuntes,
Continuarão movendo-se em seus fios.

Irão os cruéis deuses como óculos,
Os peludos carnívoros com livro,
Os pulgões e os pipipasseiros*.

E quando estiver recém-lavados o mundo
Nascerão outros olhos na água
E crescerá sem lagrimas o trigo.


Pablo Neruda
In Cien Sonetos de Amor
Trad.: Carlos Nejar

XCVII

HÁ que voar neste tempo, aonde?
Sem asas, sem avião, voar sem dúvida:
Já os passos passaram se remédio,
Não alçaram os pés do passageiro.

Há que voar a cada instante como
As águias, as moscas e os dias,
Há que vencer os olhos de Saturno
E estabelecer ali novos sinos.

Já não bastam sapatos nem caminhos,
Já não servem a terra aos errantes,
Já cruzaram a noite às raízes,

E tu apareceras em outra estrela
Determinadamente transitória
Por fim em papoula convertida. 


Pablo Neruda
In Cien Sonetos de Amor
Trad.: Carlos Nejar


XCVIII

E ESTA PALAVRA, este papel escrito
Pelas mil mãos de uma só mão,
Não fica em ti não serve para sonhos,
Cai a terra: ali permanece.

Não importa que a luz ou a louvação
Se derramem e saiam da taça
Se foram um tenaz tremor do vinho
Se tingiu tua boca de amaranto.

Não quer mais a silaba tardia
O que traz e retraz o arrecife
De minhas lembranças, a irritada espuma,

Não quer mais senão escrever teu nome.
E ainda que o cale meu sombrio amor
Mais tarde o dirá a primavera. 


Pablo Neruda
In Cien Sonetos de Amor
Trad.: Carlos Nejar



XCIX

OUTROS DIAS VIRAO, será entendido
O silencio de plantas e planetas
E quantas coisas puras passarão!
Terão cheiro de lua os violinos!

O pão será talvez como tu és:
Terá tua voz, tua condição de trigo,
E falarão outras coisas com tua voz:
Os cavalos perdidos do outono.

Ainda que não seja como está disposto
O amor encherá grandes barricas
Como o antigo mel dos pastores,

E tu no pó de meu coração
(onde haverá imensos armazéns)
Iras e voltaras entre melancias. 


Pablo Neruda
In Cien Sonetos de Amor
Trad.: Carlos Nejar


C

NO MEIO da terra afastarei
As esmeraldas para divisar-te
E tu estarás copiando as espigas
Com tua pluma de água mensageira.

Que mundo! Que profundo perrexil!
Que nave navegando na doçura!
E tu talvez e eu talvez topázio!
Já divisão não haverá nos sinos.

Já não haverá senão todo o ar liberto,
As maças transportadas pelo vento,
O suculento livro na ramagem,

E ali onde respiram os cravos
Fundaremos um traje que resista
De um beijo vitorioso a eternidade. 


Pablo Neruda
In Cien Sonetos de Amor
Trad.: Carlos Nejar













































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